Quem me trouxe esta expressão hoje foi uma garota de quase 13 anos, moradora do bairro Vila Penteado, em São Paulo, durante a oficina que ministrei em um dos ônibus-biblioteca. Ela disse, após minha pergunta sobre um livro que tivesse marcado sua vida: “o primeiro livro de verdade que li... foi Odisseia, da Ruth Rocha”. E completou: “De verdade... quero dizer... foi o primeiro livro sem imagens que li.”
Ficou claro, pela sua expressão e discurso, que ela não estava desmerecendo os livros em que as imagens têm predomínio sobre o texto escrito. Ela estava justamente chamando a atenção para aquele grito silencioso de liberdade: a possibilidade criativa de desprender-se das imagens sobre o papel e navegar por si mesma, imersa no deleite das mil e uma possibilidades que o texto escrito lhe oferecia, como se o abandono dos livros com ilustrações simbolizasse um novo ciclo em sua vida: novas aventuras por vir. Eis a satisfação do sujeito equilibrado, que vivenciou todas as etapas do desenvolvimento – aquelas mesmas que os grandes nomes da psicanálise debateram, sobretudo Françoise Dolto, autora sobre a qual me debruço mais cuidadosamente nos últimos tempos. A criança que passou bem pelas fases de amadurecimento cognitivo e emocional pode ser tornar uma excelente leitora e produtora de textos. Colabora aqui, evidentemente, a estrutura familiar, mas acredito muitíssimo na profunda vontade e ímpeto do próprio sujeito.
Chega a ser inquietante: encontrar-se como sujeito também passa pela experiência aparentemente solitária de se ler um livro “só de texto escrito, sem ilustrações” – que desafio! E quantas imagens de sua própria verve aquela menina deve ter criado nos mirabolantes e saborosos percursos da augusta epopeia grega que escolhera como marco para sua trajetória de leitora mais amadurecida.
Ainda quero destacar duas outras participantes deste dia: uma menina de 9 anos, cujo livro paradigmático, até agora, foi Poliana, que ela leu aos sete, e uma moça de 22 cujo sonho é trabalhar de atendente em uma livraria (“um dia eu consigo, se Deus quiser”, ela me disse) e que lê muito. Seu livro marcante foi A cor da esperança, de Susan Madison, o qual ela alega não ter mais encontrado.
A gente tem mesmo uma relação muito afetuosa com os livros que passaram por nós e fizeram mais presença em nós (por motivos que não cabe aqui explicar).
Houve ainda a chegada de um garoto que mora nas vizinhanças do local em que o ônibus estaciona. Já o conhecia de outras idas minhas lá. No processo criativo de hoje, ele resolveu dar vida a alguns fantoches que ele mesmo fez, aos quais atribuiu poderes mágicos. Nada de bichos como temas, como os demais participantes fizeram.
O primeiro que ele criou foi um menino fantasma, invisível, mas com o fantástico poder do fogo. O menino já tinha morrido, mas continuava “do outro lado” ajudando as pessoas. Pelo que entendi, o personagem transmutava o fogo mediante sua vontade em benefício dos outros. Um herói. (Ah, o garoto tem vontade de ser bombeiro.)
Depois, ele ainda fez mais um fantoche, com o “poder das plantas” (provavelmente, poder de cura).
E ainda queria criar um herói para sua mãe, com algum poder que fosse útil para ela. E, quem sabe, um para seu pai... Até um para seu irmão, de dois anos, que acompanha a mãe nas atividades de diarista. De repente o irmãozinho gostaria de ter igualmente um poder mágico.
Esse "criador dos meninos superpoderosos" tem 9 anos e é um amante de livros. Já leu, por exemplo, os cinco primeiros do Harry Potter, e está aguardando os dois últimos chegarem às suas mãos.
Fico por aqui hoje: as histórias e os livros são terapêuticos. Não me canso de dizer que eles nos situam no mundo, e mais: nos ajudam a amenizar as agruras da vida e a encontrar saídas.
Viva a leitura! E viva Françoise Dolto!
***
Quer ler os mesmos livros que os leitores mencionaram hoje?
Aí vão eles:
MADISON, Susan. A Cor da Esperança. Planeta Editora.
PORTER, Eleanor H. Poliana. Ediouro.
ROCHA, Ruth. Ruth Rocha conta a Odisseia. Companhia das Letrinhas.
ROWLING, J. K. Harry Potter... (os sete livros da série). Editora Rocco.
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